sábado, 31 de maio de 2008

Fichamento de Texto: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro, 1998. Capítulo “Singularidade e normalidade no holocausto”: p.106-141

Embora o Holocausto tenha ocorrido há quase meio século e seus objetivos imediatos assim como a geração que o presenciou tenha ficado para trás e já desaparecera, os elementos de nossa civilização que direta ou indiretamente propiciaram o Holocausto ainda fazem parte de nossas vidas, não foram eliminados. Logo, a possibilidade de um novo Holocausto também não se fora junto.

O problema
Temos que ter em mente que o Holocausto não era esperado, dado o conhecimento então existente dos fatos e da conjuntura nazista. No entanto, passado apenas um ano, sua realidade deparava-se com a incrudelidade geral. Apesar desse choque, o Holocausto pouco mudou o curso da história e a nossa compreensão dos fatores e mecanismos que um dia o tornaram possível. E com essa compreensão não muito desenvolvida do que se passou meio século atrás podemos estar mais uma vez despreparados para notar e decodificar os sinais de alerta, uma vez que as condições que um dia deram origem ao Holocausto não foram radicalmente transformadas.
Como cita Leo Kuper (p.109 §2) “A ideologia e o sistema que deram origem a Auschwitz permanecem intactos. Isso significa que a própria nação-Estado está fora de controle e é capaz de desencadear atos de canibalismo social em escala sequer sonhada. Se não for controlada, ela pode consumir uma civilização (...) Muitas características da sociedade civilizada contemporânea encorajam o fácil recurso a holocaustos genocidas (...) O Estado territorial soberano reivindica, como parte integral de sua soberania, o direito de cometer genocídio ou promover massacres genocidas de povos sob o seu governo e... a ONU, para todos os efeitos práticos, defende esse direito.
O Holocausto não só, misteriosamente, evitou o choque com as normas e instituições da modernidade, mas foram essas normas e instituições que o tornaram factíveis. Sem a civilização moderna e suas conquistas mais fundamentais (destaque para os princípios da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade, além da igualdade dos direitos humanos e da noção de Estados nacionais soberanos) não teria havido Holocausto.

Genocídio adicional
O Holocausto foi tanto um produto como um fracasso da civilização moderna. Como tudo o mais que se faça a maneira moderna – racial, planejada, cientificamente fundamentada, especializada, eficientemente coordenada e executada – o Holocausto superou e esmagou todos os seus supostos equivalentes pré-modernos, expondo-os comparativamente como primitivos, perdulários e ineficientes. Como tudo o mais na nossa sociedade moderna, o Holocausto foi um empreendimento em todos os aspectos superior, se medido pelos padrões que esta sociedade pregou e institucionalizou.
Foi para os praticantes do genocídio frio, completo e sistemático como Stálin e Hitler que a moderna sociedade racional preparou o caminho. O mais notável nos casos modernos de genocídio é, simplesmente, sua escala. Em nenhuma outra oportunidade, fora os regimes de Hitler e Stálin, tanta gente foi assassinada em tão pouco tempo. Esta não foi, porém, a única novidade, mas apenas um subproduto. O assassínio em massa contemporâneo caracteriza-se, por um lado, pela ausência quase absoluta de espontaneidade e, por outro, pelo predomínio de um projeto cuidadosamente calculado, racional. É marcado pela quase completa eliminação da contingência e do acaso, assim como pela independência face às emoções grupais e as motivações pessoais. O genocídio moderno, com um propósito, é um elemento de engenharia social, que visa a produzir uma ordem social conforme um projeto de sociedade perfeita.
Utilizando-se de uma parábola, Bauman, compara a sociedade a um jardim, de modo que devem ser execrados todos os elementos que o enfeiem, como as ervas daninhas no jardim, por um responsável em estabelecer a harmonia e a beleza. As vítimas de Hitler e Stálin não foram mortas para a conquista e colonização do território que ocupavam. Muitas vezes foram mortas de uma maneira mecânica, enfadonha, sem o estímulo de emoções humanas – sequer o ódio. Foram mortas por não se adequarem ao esquema de uma sociedade perfeita. Sua morte não foi um trabalho de destruição, mas de criação, para que uma sociedade humana objetivamente melhor, mais eficiente, mais moral e mais bela pudesse ser criada num mundo harmonioso, livre de conflitos, dócil aos governantes, ordeira e controlada, onde pessoas marcadas pela inerradicável praga do seu passado ou origem não podiam se adequar a esse mundo impecável, saudável e brilhante. O Holocausto é um subproduto do impulso moderno em direção a um mundo totalmente planejado e controlado.

Peculiaridade do genocídio moderno
O Holocausto moderno é único num duplo sentido. É único entre outros casos históricos de genocídio porque é moderno. E é único face à rotina da sociedade moderna porque traz à luz certos fatores ordinários da modernidade que geralmente são mantidos à parte. (p.118 §1) Neste segundo sentido de sua singularidade, só a combinação de fatores é rara e incomum, mas não os fatores combinados. Separadamente, cada fator é comum e normal.
O Holocausto absorveu um enorme volume de meios de coerção. Usando-os a serviço de um único propósito, também estimulou sua posterior especialização e aperfeiçoamento técnico. Sua formidável eficiência baseou-se, sobretudo na submissão do seu uso a considerações meramente burocráticas, técnicas. A violência tornou-se uma técnica. Como todas as técnicas, é livre de emoções e puramente racional.

Efeitos da divisão hierárquica e funcional do trabalho
O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim, dissociados da avaliação moral dos fins. O crescimento do potencial mobilizador e coordenador e da racionalidade e eficiência de ação são alcançados pela civilização moderna graças ao desenvolvimento da administração burocrática. A dissociação é, de modo geral, resultado da meticulosa divisão funcional do trabalho e da substituição da responsabilidade moral pela técnica.
Uma vez isolados de suas longínquas conseqüências, a maior parte dos atos funcionalmente especializados ou passa facilmente no teste moral ou é moralmente indiferente. Quando desmembrado de preocupações morais, o ato pode ser julgado em termos racionais inequívocos. O que importa é se o ato foi executado de acordo com o melhor conhecimento tecnológico possível e se o resultado alcançou a melhor relação custo-benefício. O resultado é a irrelevância dos padrões morais para o sucesso técnico da operação burocrática. Os autores se interessam em fazer bem o trabalho, e a moralidade resume-se ao comando para ser um bom, eficiente e diligente especialista e trabalhador. E é de fato, o que ocorre na “máquina holocaustica” onde cada etapa é responsabilidade de um indivíduo ou grupo, buscando a efetividade da ação em andamento.

Desumanização dos objetos burocráticos
A desumanização liga-se de modo inextricável à tendência mais essencial, racionalizante, da moderna burocracia, e o modo de ação burocrático, por sua vez, contém todos os elementos técnicos que se revelaram necessários à execução de tarefas genocidas, à medida que a burocracia é programada para buscar a solução ótima, mais favorável. É programada para medir essa solução ótima em termos tais que não fizesse distinção entre um e outro objeto humano ou entre objetos humanos e desumanos. O que importa é a eficiência e a diminuição dos custos para produzi-las. Todo esse esquema foi posto em prática para viabilizar o extermínio nos campos nazistas.

O papel da burocracia no Holocausto
Assim foi que na Alemanha de meio século atrás essa burocracia recebeu a tarefa de tornar o país livre de judeus, iniciando com a definição precisa do objeto, com a posterior listagem dos que se encaixavam na definição e a criação de uma ficha para cada um. Prosseguiu segregando os que figuravam nos arquivos, e por fim, passou a expulsar a categoria segregada da terra ariana a ser purificada, primeiro para que emigrasse e depois deportando-as para territórios não germânicos, assim que tais territórios caíram sob controle alemão. Ao final com um grande império ecumênico, a única forma de eliminar o lixo judeu fora pela fumaça, como diz Bauman.
A burocracia contribuiu para a continuidade do holocausto não apenas por sua inerente capacidade e suas técnicas, mas também por sua imanente enfermidade e afecções. A tendência de todas as burocracias a perderem de vista o objetivo original e se concentraram em vez disso nos meios – meios que se transformam em fins – foi amplamente ressaltada, analisada e descrita. A burocracia nazista não escapou ao seu impacto. Uma vez em movimento, o mecanismo do assassinato ganhou ímpeto próprio e o que mantinha a máquina assassina em funcionamento então era unicamente sua própria rotina e ímpeto. As técnicas do assassinato em massa tinham que ser usadas porque estavam lá.

Falência das salvaguardas modernas
A consciência da ameaça constante contida no desequilíbrio caracteristicamente moderno de poder tornaria a vida insuportável, se não fosse pela nossa confiança nas salvaguardas que acreditamos terem se tornado o próprio tecido da sociedade civilizada, moderna. Só em poucas ocasiões dramáticas a confiabilidade das salvaguardas é colocada em dúvida, sendo o principal significado do Holocausto foi ter sido uma das mais temíveis ocasiões desse tipo. Talvez o fracasso mais espetacular tenha sido o da ciência como o corpo de idéias e como rede de instituições de estudo e ensino, enquanto essa avançava de forma estupenda. Falharam também as Nações Unidas e a diplomacia entre os países.
A repulsa cultural à violência revelou-se pobre salvaguarda contra a coerção organizada; enquanto as maneiras civilizadas mostraram uma espantosa habilidade para coexistir pacífica e harmoniosamente com o assassinato em massa. A repulsa civilizada da desumanidade não se mostrou forte o bastante para encorajar uma resistência ativa a ela. A maioria dos espectadores reagiu como as normas civilizadas aconselham e nos levam a reagir diante de coisas bárbaras e repugnantes: viraram os olhos para outro lado.

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